Tácticas de repressão – uma análise objectiva
Rui Viana Pereira,
http://bilioso.blogspot.pt/2012/11/tacticas-de-repressao-uma-analise.htmlactualizado em 16/11/2012)
Tentarei aqui analisar os factos ocorridos ao final do dia na manifestação da greve geral de 14/11/2012 em Lisboa, o significado das posições expressas pelos comentadores de serviço e a TV, o comportamento da polícia e o programa de acção do Governo em matéria de repressão para os próximos tempos.
Propositadamente não uso imagens neste artigo, para evitar introduzir factores emocionais.
A carga policial em São Bento, Lisboa – os factos
Indícios de premeditação – Horas antes da manifestação, a polícia visitou os comerciantes da zona, aconselhando-os a encerrarem portas e protegerem os estabelecimentos, com o seguinte comentário: «Isto hoje vai ser duro». Estes factos foram confirmados no dia seguinte junto dos próprios comerciantes. É inegável, portanto, que houve métodos e objectivos planificados por parte das chefias militares e do Governo.
Agressões à polícia – É um facto, documentado por todas as televisões nacionais e estrangeiras, que um grupo bastante restrito de pessoas (6 a 12, a julgar pelas imagens) atirou pedras e bolas de fogo à polícia, durante um espaço de tempo muito prolongado, antes de esta ter ordem para molestar os manifestantes ou carregar sobre a multidão. Este grupo não é identificável, por estar mascarado, havendo sites procuram demonstrar que pelo menos alguns deles são membros da polícia, ao contrário do que afirma o ministro.
Novo material utilizado – A polícia aparece com novos escudos de corpo inteiro, como se estivesse à espera de uma chuva de pedras. Verifica-se também a utilização, pela primeira vez, de megafones por parte da polícia, no sentido anunciar a ordem de dispersão e assim anular a futura defesa em tribunal contra as acusações de «desobediência» e «resistência» às ordens da polícia – este expediente não resultou, porque o megafone não conseguiu sobrepor-se ao vozear da multidão.
Práticas e antecedentes e policiais – Não é a primeira vez que um grupo restrito de pessoas agride a polícia durante uma manifestação. Nuns casos essa actuação foi interrompida sem consequências de maior, noutros suscitou intervenção da polícia.
Nalguns casos anteriores os próprios manifestantes pediram aos elementos que atiravam objectos contra a polícia que suspendessem o acto.
Noutros casos tratava-se de provocadores infiltrados (polícias à paisana ou militantes de extrema direita) que foram identificados e isolados pelos próprios manifestantes.
Quando as agressões não foram atalhadas pelos próprios manifestantes, a polícia accionou os seus mecanismos normais: a segunda linha de polícia faz uma sortida táctica, isola e detém os seus agressores. Esta reacção demora geralmente algum tempo – o tempo necessário para analisar a situação, identificar os elementos em questão e tomar decisões tácticas, imagino eu – mas de modo algum horas. Aliás, se a polícia necessitasse de horas para reagir a uma situação de agressão, estaria técnica e militarmente desclassificada...
Alterações do comportamento padrão
Desta vez não era possível identificar os agressores contra a polícia, por estarem mascarados. Não se sabe, portanto, a que campo pertenciam.
Houve algumas tentativas por parte dos manifestantes de porem termo à agressão, mas desta vez não resultaram como das vezes anteriores.
As agressões foram mais efectivas que de todas as vezes anteriores, não tiveram nada de simbólicas – envolveram arremesso de pedras de basalto, maiores e mais pesadas que as de calcário e que muito facilmente matam uma pessoa. (Eu próprio, que cresci numa zona problemática próxima de S. Bento, vi alguns colegas de escola serem mortos por uma simples pedrada de basalto, nos anos 1950-1960.)
Deduz-se (na falta de outra razão alternativa) que o corpo policial presente no local teve ordens para suportar o suplício da chuva de pedras durante um período de tempo invulgar e portanto suspeito. Os testemunhos acerca desse período de tempo variam, podendo no entanto dizer-se que terá sido mais de uma hora.
O papel da comunicação social – A análise atenta de todas as imagens e reportagens, respectivas origens e horas de gravação e emissão mostra que as chefias da polícia aguardaram pacientemente que todas as televisões nacionais e estrangeiras presentes tivessem gravado abundantemente as imagens da chuva de pedras. Só depois deram ordem de carga sobre os manifestantes.
Os indícios de coordenação entre as chefias do Governo e as chefias dos órgãos de comunicação social mainstream são incertos e inconclusivos, mas tudo aponta nesse sentido. No frenesim de publicar notícias em cima do acontecimento, foram publicadas na Internet, por lapso, vídeos gravados no local pelas televisões, não editados e posteriormente retirados. Num deles ouvia-se as comunicações entre o estúdio e o repórter (ausente da imagem e inidentificável), em que este dizia: «Não, isso eu não digo. Recuso-me a dizer.» [cito de memória]
Objectivo real da carga policial – A análise pormenorizada das imagens mostra que a carga policial arranca das escadarias, passa pela primeira fila de manifestantes onde estavam os agressores sem lhes tocar e avança à bastonada sobre a multidão pacificamente situada por detrás dos agressores.Nas imagens que analisámos nenhum agressor é molestado ou detido.
Diferenças de comportamento dentro do corpo policial – A análise das imagens é difícil neste aspecto. No entanto fica a ideia de que existem dois tipos de atitude entre os elementos da polícia: os que procuraram afastar as pessoas com um mínimo de danos e na base do diálogo, e os que arrearam a torto e a direito sobre toda a gente (incluindo pessoas com crianças, idosos e deficientes), parecendo ser estes a maioria. (Não cabe aqui fazer uma análise sobre as possíveis contradições internas e subjectivas do corpo policial.)
Utilização de armas de fogo – Pouco depois ouvem-se disparos do lado da Av. D. Carlos. Os testemunhos são inconcludentes; as televisões e agências noticiosas falam de balas de borracha. As imagens não revelam nenhum motivo plausível para esses disparos – ou todas as câmaras estavam apontadas noutra direcção, ou os disparos tiveram um intuito simplesmente intimidatório com efeitos futuros.
Uma nova táctica: intimidação dos jovens e respectivos pais – Realizaram-se rusgas a um quilómetro do local da manifestação, com detenção de adolescentes. Muitos deles nem sequer terão participado na manifestação.
O local escolhido para fazer as detenções, completamente alheio aos acontecimentos da manifestação e respectiva carga policial, não pode ser considerado casual, mas sim premeditado. Poderia ter sido qualquer outro, a norte ou a sul, a leste ou a oeste – foi portanto deliberadamente escolhido. Trata-se duma zona onde é seguro encontrarem-se todos os dias adolescentes que se dirigem para zonas de restauração, encontro social e vida nocturna.
Nas imagens disponíveis vemos algumas dezenas de adolescentes manietados, sentados no chão da calçada à espera de serem transportados para as carrinhas de detenção.
Nas mesmas imagens vê-se amigos dos detidos que tentavam combinar com eles formas de auxílio (avisar a família e os advogados, etc.) serem escorraçados pela polícia. É criada uma zona de segurança e incomunicabilidade de mais de 100 metros à volta dos adolescentes detidos.
É aqui o momento de tecer algumas considerações acerca desta táctica, por ser ela novidade.
Em primeiro lugar, é necessário concluir que houve um plano premeditado dos poderes públicos para intimidar os adolescentes, criando um caso exemplar que os órgãos de comunicação social se encarregaram de amplificar.
Em segundo lugar, fazemos notar que a detenção não intimida apenas os adolescentes. Visa também ou sobretudo os pais, que na cultura actual adoptam atitudes de proteccionismo extremo e até castrador, exercendo um controle muito mais apertado do que durante os anos da ditadura, por exemplo. Depois de verem as imagens divulgadas, os pais criarão uma pressão enorme sobre os filhos para que estes «não se metam na política».
A juventude é, historicamente, um dos sectores que mais dores de cabeça causa aos poderes instituídos em épocas de confronto – mais do que o enorme contingente de reformados, por exemplo. Esta tendência histórica não pode contudo ser vista como uma fórmula linearmente aplicável na situação actual, porque muitas das características históricas passadas não se verificam materialmente na actualidade. A juventude portuguesa manifesta um claro desinteresse pela intervenção política (basta comparar com imagens e estatísticas de épocas passadas), um compreensível nojo pelas correntes partidárias e políticas, e um pendor claramente pacifista no que diz respeito à contestação política, embora não no que diz respeito a outros aspectos da sociedade – como o futebol, por exemplo, onde a violência agressiva das claques, as batalhas campais e as barricadas fazem a meia dúzia de lançadores de pedras de S. Bento parecer uns meninos de coro. Em comparação com décadas anteriores a 1980, as universidades portuguesas assemelham-se mais a jardins-escola infiltrados por delegações bancárias e agências de marketing, do que a locais privilegiados de pensamento, acção e transmissão de conhecimento (logo, de contestação), como lhes competia.
Vistas estas condicionantes actuais referentes à juventude, parece demasiado descabida a orientação táctica dos poderes públicos ao lançarem uma caça ao homem (e à mulher) no Cais do Sodré, a 1 km dos acontecimentos da manifestação – tão absurdamente descabida que temos de olhar para ela com maior atenção e procurar aí algum objectivo premeditado. Infelizmente, com os dados presentemente à nossa disposição, apenas podemos especular sobre esses objectivos e motivações.
A única coisa que nos vem à ideia a este propósito é a seguinte: a hipótese de o Governo estar a preparar novas medidas de austeridade e repressão para os próximos meses, com um grau de agressividade social tão profundo, especialmente ao nível da juventude, que foi decido tomar desde já um conjunto de medidas preventivas: desencorajar antecipadamente toda a participação cívica e contestação entre a juventude e pressionar os pais a sofrearem os filhos.
Direitos cívicos e humanos – os factos
Infelizmente não é possível procedermos aqui a uma análise comparada, que seria indispensável para caracterizarmos com precisão a situação política actual.
Uma das coisas que caracteriza a sociedade portuguesa é o desprezo pelo estudo permanente da realidade material e histórica, baseando tudo na opinião fortuita. Por isso não dispomos daquilo que seria desejável: uma análise objectiva permanente dos comportamentos policiais no que diz respeito a tácticas de esquadra e direitos cívicos e humanos, realizada por grupos de advogados de causa e organizações de direitos humanos. Teremos por isso de navegar à vista na nossa análise.
Recusa de assistência de advogado – A todos os detidos foi recusada a assistência de advogado.
Recusa de assistência familiar – A todos os detidos foi recusada a assistência e contacto familiar, com a agravante de muitos dos detidos serem jovens ou menores.
Recusa de assistência médica urgente – A todos os detidos foi recusada assistência médica. Muitos deles encontravam-se feridos, alguns com gravidade evidente – caso de um jovem que tinha um hematoma de uma gravidade tal num dos lados da face, que o olho não era visível. À data em que estas linhas são escritas não sabemos ainda quais as consequências futuras dessa injúria.
Tortura, práticas intimidatórias e práticas vexatórias – No Forte de Monsanto, para onde foram levados bastantes detidos e do qual possuímos testemunhos directos, foram adoptadas múltiplas práticas vulgarmente conhecidas em Portugal por «pidescas».
Insultos e frases vexatórias – Durante a detenção, em especial durante o acto de revistar os detidos, foram ininterruptamente pronunciadas provocações, insultos, e frases que pretendiam inculcar a ideia de que aqueles jovens não deviam jamais meter-se em coisas políticas («devias era estar em casa a estudar, meu bardamerdas», etc.). Caso tivesse havido resposta a estas provocações, seria de prever uma escalada de violência por parte dos carcereiros, mas não temos testemunho sobre algum caso.
Desnudamento e agachamentos – A maioria das pessoas foi simplesmente revistada, mas pelo menos num caso testemunhado uma jovem (em pé de igualdade com as outras no que respeita às circunstâncias inocentes da detenção) foi despida e obrigada a fazer agachamentos.
Tortura da bexiga – Todas as mulheres entrevistadas se queixam de ter sido impedidas de aceder à casa de banho durante mais de duas horas, apesar de algumas manifestarem insistentemente a sua aflição.
Tortura de cela e frio – O procedimento normal da polícia é o de retirar os atacadores dos sapatos, para segurança dos detidos (próprios e alheios). Neste caso foram-lhes retirados ao sapatos (a todos), obrigando os detidos a permanecerem toda a noite de pés nus em chão de pedra.
Práticas de má-fé e potencial incriminação – Os detidos foram obrigados a assinar um papel com espaços em branco (contra todos os métodos administrativos instituídos) como condição previa à sua libertação. Desconhecem-se por agora as consequências desta manobra nos julgamentos e acusações subsequentes.
A primeira conclusão a retirar de tudo isto é que o Forte de Monsanto, para onde foi levado um lote escolhido de jovens detidos, foi previamente «apetrechado» com membros da polícia bem treinados em práticas pidescas de guerra e tortura.
Mais uma vez notamos aqui um comportamento premeditado e minuciosamente programado por parte do ministério correspondente. O tipo de provocações e agressões verbais praticado, visando propositadamente o tema da participação cívica ou política, é tão orientado que não pode ser casual. Os comportamentos demonstram coerência directiva e exigem treino específico.
O papel da comunicação social
Como já vimos, apesar da escassez de provas conclusivas, tudo aponta no sentido de haver uma atitude programada em relação ao papel da comunicação social.
A qualquer hora do dia e da noite que se ligue a televisão, encontramos comentadores a falarem sobre «as agressões à polícia» e a carga policial. Da direita à esquerda institucional, do Governo à oposição, todos os comentadores (e bem assim todos os entrevistadores) falam horas a fio das agressões à polícia em S. Bento.
Sendo certo que se ouviram de passagem alguns comentários acerca do sucesso da greve geral, todos juntos não chegam a ocupar 5 minutos de emissão nas televisões ao longo do dia. Os dados objectivos de adesão à greve não são divulgados e analisados. O maior tempo de intervenção sobre o assunto a que assistimos na TV provém de militantes do PSD, comentadores consagrados a quem não é possível cortar a palavra, que manifestaram a sua convicção de que a greve foi um sucesso e até explicitaram o facto de alguns sectores da UGT terem aderido.
Por outras palavras: a carga policial foi extremamente eficaz para anular (a nível nacional e internacional) a expressão da indignação generalizada perante as políticas do Governo.
O papel premeditado da comunicação é denunciado por um ou dois editores incompetentes que desastradamente fizeram títulos do tipo: «os confrontos apagaram o efeito da greve». Sendo certo que aquilo que o público sabe se resume àquilo que a comunicação social publica, torna-se evidente que quem apagou objectivamente o efeito da greve não foram 8 lançadores de pedras, mas sim a própria comunicação social.
O papel dos dirigentes sindicais
Saindo agora do registo factual e objectivo, deixo aqui uma última nota política opinativa sobre o papel dos dirigentes sindicais no meio disto tudo.
Como se sabe, não era tradição dos sindicatos fazerem manifestações durante as greves gerais. Este novo hábito, aparentemente imposto por iniciativa dos movimentos sociais independentes dos sindicatos, forçou a CGTP a participar e partilhar a contestação na rua nestas ocasiões. É um bom progresso.
Mas temos de concluir que apesar disso os dirigentes instalados nas cúpulas sindicais ainda não perceberam, a fundo, de que raio se trata aqui. Aparecem na manifestação, rezam a sua missa, e pisgam-se para casa, deixando milhares de manifestantes (cada vez mais, à medida que se sucedem as greves gerais) por sua conta e risco na rua.
Nada disto parece estranho, nunca ocorreu a ninguém perguntar «olhe lá, você não devia ficar junto com os trabalhadores enquanto eles estiverem na rua?», nenhum trabalhador parece sentir-se particularmente ofendido com o facto de o seu representante sindical lhe virar as costas, por um motivo muito simples: os trabalhadores habituaram-se a olhar para os seus representantes sindicais exactamente como olham para os seus representantes parlamentares – alguém que lhes é alheio e que vive num aparelho político que lhes é inacessível.
Será que também neste aspecto poderemos esperar alguma mudança de atitudes por parte dos dirigentes sindicais, num futuro próximo?