Nos Jogadores Anónimos (JA) aprende--se que o jogo compulsivo conduz fatalmente a um de três finais: a morte, a loucura ou a prisão. E durante os anos em que jogou diariamente em casinos Helena esteve muito perto de morrer. Atolada em dívidas e incapaz de parar de jogar, tentou suicidar-se à frente dos quatro filhos. Mais tarde, nas reuniões dos JA, conheceu Hélder, que esteve a um passo de ir preso. Aos 30 anos já tinha um bom emprego na função pública – daqueles para toda a vida –, mas os problemas com o jogo levaram-no a desviar milhares de euros do local de trabalho. Foi apanhado, respondeu em tribunal e foi condenado a uma pena de prisão suspensa. José, 70 anos, viveu durante quatro praticamente sem comer nem dormir. Quase enlouqueceu.
Helena está há oito meses sem jogar, Hélder há dois anos e sete meses. José há oito anos. Mas por muito distante que esteja a última ida ao casino, um jogador compulsivo nunca deixa de o ser. A dependência do jogo é uma doença – reconhecida pela Organização Mundial de Saúde – que não tem cura.
Carta 1 – A morte Depois de sair do casino, Maria Helena pegou numa caixa de comprimidos e numa garrafa de whisky e tentou suicidar-se. Acabou inconsciente, no hospital, com os quatro filhos aos pés da cama. Foi a primeira de várias tentativas. A primeira vez que entrou num casino, em Macau, em 1994, a sorte de principiante sorriu-lhe e ganhou um prémio “enorme” numa slot machine. “Nem sabia como é que se jogava, fiquei perplexa a olhar para as moedas a caírem na bandeja”, recorda. Nessa mesma noite investiu o dinheiro todo. E perdeu.
Pouco tempo depois mudou-se para Portugal e arranjou uma casa perto do Casino do Estoril. Uma noite foi assistir a um espectáculo e decidiu voltar a tentar a sorte. Sentou-se a uma máquina e ganhou 100 contos. Mas a adrenalina do prémio foi o princípio do fim. Com o casamento à beira da ruptura, Helena passou a frequentar a sala de jogo todos os dias. “De certa forma, aquilo funcionava como uma espécie de evasão”, conta. No espaço de poucos meses, acabou com os plafonds de três cartões de crédito e o ordenado de economista deixou de chegar para pagar as dívidas ao banco.
“O problema do jogador compulsivo é que nunca há uma forma de parar: quando se ganha quer-se ganhar mais e quando se perde quer-se recuperar o que se perdeu”, diz. Nessa altura, em 1995, Helena decidiu parar de jogar e durante nove meses não entrou no casino. “A ressaca foi brutal. Sentia um vazio gigante”, recorda. O escape eram os chats na internet. “Ficava até às três da manhã a conversar com gente desconhecida.” Nove meses depois as contas estavam reequilibradas. Até que uma amiga regressa de Macau. “Levei-a a passear pela Marginal e quando ela viu o casino [do Estoril] pediu-me para entrarmos. Eu disse que podíamos ir mas que não jogaria.” Claro que jogou. E até ganhou 50 contos. Bastou uma tarde para o pesadelo recomeçar.
Helena chegou a aguentar três horas de pé na sala de jogo à espera que a máquina favorita – aquela em que tinha “mais fé” – vagasse. Chegou a estar de pijama, deitada, e a levantar-se de madrugada só para ir jogar. Acabou com o telefone fixo que tinha em casa para não correr o risco de alguém suspeitar que passava as noites fora. Durante o sono sonhava quase sempre com as slot machines. Nos três anos que se seguiram jogou todas as noites – e nunca mais voltou a ganhar um cêntimo. Numa só ida ao casino chegou a perder 800 euros. Acumulou seis créditos em bancos diferentes e uma dívida de mais de 60 mil euros. “A dada altura perde-se a noção de tudo. Hoje, com os juros e a engenharia financeira que fiz, nem sei bem quanto perdi naqueles anos... talvez 200 mil euros.”
A família começou a desconfiar e um primo que trabalhava no Banco de Portugal decidiu inteirar-se da situação financeira de Helena. “Fui descoberta e o meu filho mais velho encostou-me à parede.” Helena negou tudo. “Como qualquer jogador, tornei-me mestre na arte da manipulação”, refere. Mesmo assim, os filhos obrigaram-na a ir às reuniões dos JA. Há oito meses que começou a recuperação e já foi a mais de 100 reuniões. No grupo, a economista encontrou de tudo. “Pais que chegaram a roubar dinheiro do mealheiro dos filhos, bancários reformados a viver em quartos arrendados, gente que em desespero vendeu aquecedores a óleo na feira por cinco euros. Percebi que afinal não estava sozinha”, conta. O primeiro desafio – deixar de jogar – está, por enquanto, superado. Agora falta pagar as dívidas. O objectivo de Helena é reequilibrar as contas em cinco anos. “Consegui, com a ajuda de uma instituição que apoia famílias endividadas, declarar a minha insolvência pessoal e vou ter de viver nos próximos anos com cerca de 400 euros por mês”, explica.
Carta 2 – O louco A recuperação do vício do jogo, explica o psicólogo Pedro Hubert, especialista neste tipo de dependência, é “particularmente difícil” – porque depois de parar o jogador compulsivo tem de enfrentar as consequências financeiras do vício que manteve. “E que podem durar vidas inteiras”, diz. José, 70 anos, deixou de jogar há oito e ainda continua a pagar dívidas. No espaço de apenas cinco anos deixou mais de 80 mil euros no casino. Durante esse tempo valeu tudo: enganar fornecedores, clientes, coleccionar créditos. “Toda a minha vida e todas as minhas energias eram canalizadas para a sala de jogo”, admite. O vício começou tarde. José começou a jogar já depois dos 50 anos, na sequência de um divórcio. “Sei que sou uma pessoa emocionalmente complicada e jogar – a relação ganhar-perder – funcionava como uma espécie de anestesia para os problemas que estava a atravessar”, recorda.
Todas as noites acabavam da mesma maneira. Sem dinheiro no bolso e a braços com crises de choro, ansiedade e insónias. “Travava uma luta interior imensa. Saía do casino, castigava-me, dava murros no volante do carro, prometia que não voltava a entrar ali, mas no dia seguinte estava lá outra vez.” Durante quatro anos José praticamente não dormiu e era raro comer uma refeição quente. Até que numa noite a sorte lhe sorriu: ganhou 6 mil euros de uma só vez. Meteu metade do dinheiro ao bolso, para fazer obras em casa, e investiu o resto nas máquinas. Perdeu logo os 3 mil euros e nas noites seguintes gastou a quantia que tinha guardado. “As obras em casa avançaram e eu fiquei sem dinheiro para as pagar.”
Entretanto, a empresa que José geria só não se afundou por milagre. “Conheci um jogador anónimo que me arrastou para uma reunião”, conta. No começo não levou aquilo muito a sério. “Mas passado um tempo entreguei-me ao programa. Só aí é que percebi verdadeiramente o estrago que tinha causado na minha vida.” Passados oito anos, José continua a ir às reuniões. “Porque sei que tenho uma doença para toda a vida”, justifica. E passado tanto tempo não deixa de pensar no jogo. “Ainda me apetece, é uma coisa que vai estar sempre no meu imaginário. Gosto de jogar. Mas sei que basta uma só vez para descambar tudo de novo. O melhor é estar afastado, porque sei que as minhas apostas são violentas. Não consigo estabelecer uma boa relação com o jogo”, admite.
Carta 3 – A Justiça Hélder, 37 anos, ainda está a tentar recomeçar. Arranjou emprego há quatro meses e mudou radicalmente de vida. O fundo do poço de cada jogador é diferente e o de Hélder aconteceu no dia 21 de Agosto de 2009, quando gastou o ordenado de 2 mil euros em apenas meia hora. Foi a gota de água de uma história que durou sete anos e acabou no banco dos réus. Quando Hélder perdeu por completo o controlo das dívidas começou a desviar dinheiro no local de trabalho. “Estava numa posição em que contactava com muito dinheiro e acabei por desviar milhares de euros, que canalizava para o casino. Logo eu, que nunca me imaginei a ser capaz de roubar o que quer que fosse”, recorda. Foi apanhado, julgado e condenado a uma pena de prisão suspensa.
Aos 15 anos, Hélder já gastava a semanada toda nas máquinas dos salões de jogos. E a má relação com o dinheiro manifestou-se muito cedo. “Sempre tive tendência para gastar tudo o que tinha. Em roupa, por exemplo. Sentia uma necessidade muito forte de aprovação por parte dos outros e era uma maneira de elevar o meu amor-próprio”, admite. Aos 18 anos entrou pela primeira vez num casino, no Estoril, e um amigo ganhou 40 contos. “Aparentemente o jogo não me dizia nada, mas recordo-me de sentir raiva por ele ter conseguido ganhar e eu não”, recorda.
Entretanto conseguiu um bom emprego – “daqueles para toda a vida” – na função pública e começou a frequentar o casino. Sempre sozinho. Durante anos, as noites foram álcool, jogo e mulheres. Chegou a estar 12 horas seguidas à frente de uma slot machine. Quase todas as madrugadas acabavam em choro e insónias. “Dizia que não ia voltar, mas no dia a seguir já lá estava outra vez.” Foi assim durante sete anos. “Cheguei a sair do casino e não ter dinheiro nem gasolina no carro. Cheguei a remexer em gavetas em casa à procura de moedas para poder comprar uma lata de atum para matar a fome”, recorda.
Para fazer frente às dívidas, contraiu cinco créditos. “O último, da Cofidis, foi de 15 mil euros e nem um mês durou.” Para um jogador compulsivo, a lógica dos créditos é sempre a mesma. “Pede-se e pensa-se que vai dar para pagar tudo e resolver os problemas, mas o dinheiro acaba invariavelmente no casino.” As cartas do banco começaram a aparecer em casa e a família começou a fazer perguntas. “Consegui esconder tudo muito bem até ao fim. Porque havia duas pessoas dentro de mim: o Hélder que ia trabalhar durante o dia e o Hélder que à noite se isolava no casino. E aí valia tudo.” Muitas vezes quando saía para o casino deixava os cartões em casa, mas nem isso servia para controlar os gastos. “Estava no Casino de Lisboa, ficava sem nada, pegava no carro e ia até casa, em Sintra, para os ir buscar”, conta.
Quando foi descoberto no local de trabalho e no dia em que ficou com a conta a zeros, em Agosto de 2009, Hélder decidiu pedir ajuda e juntou-se aos JA. “No início achei aquilo tudo muito estranho, especialmente a parte espiritual dos 12 passos, mas fui dando o benefício da dúvida.” Só no terceiro mês percebeu que tinha de parar de jogar. “E para conseguir parar precisava de fazer tudo de maneira diferente. Falar mais de mim, estar com os meus companheiros. Abrir o jogo.” Com o passar do tempo foi mudando de vida. Inscreveu-se no ginásio, actualizou o currículo, voltou a estudar, começou a fazer voluntariado, arranjou trabalho. Nunca mais voltou a entrar num casino.
“No primeiro ano foi difícil, mais pela questão de não poder jogar.” Mas o pior veio depois, quando as consequências da vida que levou durante sete anos começaram a chegar. “Custou muito saber que já tinha parado de jogar e ter de enfrentar os meus antigos colegas em tribunal”, diz. Passados dois anos e sete meses de recuperação, Hélder diz que tudo mudou. “Estou mais calmo, mais espiritual, sou capaz de olhar para os outros, coisa que antes não fazia”, explica. E continua a frequentar as reuniões, quatro vezes por semana. O programa dos 12 passos é complementado com a terapia individual com um psicólogo, uma vez por semana. “Tento não pensar naquilo que perdi e vivo um dia de cada vez”, remata.
Há cada vez mais jogadores Metade dos pacientes que entram no consultório de Pedro Hubert, um dos poucos psicólogos portugueses especializados na dependência do jogo, só jogam em casinos online – um sector “em crescimento, perigoso e sem regulação”, diz. Por culpa destes casinos na internet, o número de jogadores está a aumentar em Portugal. Mas há outros factores que explicam este crescimento. “Há mais casinos normais, mais bingos. A oferta hoje é muito superior àquela que havia há alguns anos”, justifica o especialista. E a própria crise poderá levar mais gente aos casinos. “As pessoas estão mais dispostas a arriscar e quem tiver a predisposição para a dependência não consegue parar.” Por outro lado, o jogo funciona como uma componente de escape, alheamento e evasão. Sensações, explica Pedro Hubert, “muito procuradas na sociedade actual”.
Os jogadores de casinos online são diferentes dos jogadores tradicionais. São mais jovens, com ordenados maiores e formação superior. Quanto aos jogadores compulsivos dos casinos tradicionais, as estatísticas mostram que 75% são homens, entre os 30 e os 40 anos, com rendimentos médios. Vivem em centros urbanos ou suburbanos. Por norma, descreve o psicólogo, são pessoas “muitíssimo inteligentes” e com carreiras consolidadas. “Têm, por natureza, um perfil competitivo, são desafiadoras, gostam do poder, da novidade, de sensações fortes”, diz o especialista, sublinhando que estas competências são encaradas como mais-valias do ponto de vista profissional e até social na sociedade actual. “Mas quando canalizadas para o jogo tornam-se destrutivas.”
E afinal porque é que um jogador se torna compulsivo? Pedro Hubert explica que existe em quase todos os jogadores uma predisposição genética. “É raro o jogador que não tenha na família alguém que também tenha jogado ou que tenha tido outro tipo de dependência ou um quadro depressivo”, explica. Depois há a componente neurobiológica e factores culturais. “Está demonstrado que quem vive exposto a ambientes de jogo tem maior tendência para se tornar dependente”, refere o especialista. O vício do jogo é um problema com muitas particularidades. É a dependência com maior taxa de suicídios, por exemplo. “Alia a impulsividade e a vertente da competição a momentos de depressão. Estes factores conjugados com os problemas financeiros e os conflitos familiares são fatais”, justifica Pedro Hubert. E a saída é sempre difícil. “Os grupos de partilha, como os JA, são fundamentais, conjugados com terapia individual e o apoio da família”, remata.
Jogadores interditos No ano passado, 359 jogadores compulsivos pediram à Inspecção de Jogos para serem integrados na lista de interdição de acesso aos casinos. O pedido tem de ser feito pelo próprio jogador e é comunicado às concessionárias dos casinos. Caso um casino não cumpra a ordem, é punido com uma multa que pode ir até 1200 euros por entrada permitida. Desde 2008, segundo dados do Turismo de Portugal, foram instaurados aos casinos 17 processos por incumprimento. O jogador também é punido, com uma multa que varia entre os 300 e os 1300 euros. Na prática, a interdição nem sempre funciona. “Pela simples razão de que é impossível controlar todas as pessoas que entram nos casinos”...
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