Durante muito tempo procurou-se minimizar, ou até mesmo negar, a enorme influência cultural árabe em Portugal e no Alentejo, onde chegaram no século VIII e só saíram no século XIII. A Igreja e a antiga historiografia portuguesa não pouparam esforços para destruir qualquer menção à enorme importância dessa cultura oriental sobre o país. Pesquisas mais recentes, realizadas no século XX, levadas a cabo por estudiosos respeitados, colocam os pontos nos "is" e mostram-nos um cenário bem diferente.
A invasão de povos islâmicos deu-se em Portugal no início do século VIII. Curiosamente, tudo começou com a disputa de duas facções locais para a escolha do novo rei visigodo. Os filhos do visigodo Vitiza solicitaram a ajuda de Tarik, da Mauritânia, que comandou um exército maioritariamente composto por berberes, mas também com árabes e judeus, que invadiu a península. Um ano mais tarde, novas forças vindas do norte da África, desta vez compostas por árabes, chegaram ao sul da Espanha e foram conquistando toda a Península Ibérica. O processo durou cerca de 5 anos.
Árabes e berberes tinham em comum a fé islâmica, uma religião que se iniciara há apenas um século na Arábia, e já ganhava outros continentes. Ao contrário dos visigodos, esses homens chegaram à região sem as suas famílias. O Alcorão permitia que cada um tivesse até quatro esposas, além de eventuais concubinas. De simples soldados a príncipes e reis, o casamento com mulheres locais foi inevitável, dando origem a uma profunda miscigenação que levou alguns estudiosos a descreverem o alentejano como sendo alguém com o espírito de um romano no corpo de um árabe. Tal fato pode ser constatado por aqueles que visitem a região mediante a observação do tipo físico da maioria de seus habitantes.
Passados os primeiros anos da conquista, a política muçulmana em relação aos vencidos foi marcada por grande tolerância cultural e religiosa. Os cristãos poderiam guardar a sua religião mas deveriam pagar um tributo ao Califa sobre tudo que produzissem. Tal fato fez com que muitos se convertessem à nova fé para se verem livres desse imposto, o que fez com que houvesse uma rápida integração entre esses povos, que acabaram por mesclar, de forma espontânea e pacífica, seus hábitos e costumes.
Como se pode deduzir, a influência árabe-muçulmana na região foi enorme, muito maior do que a dos povos anteriores, uma vez que a ocupação árabe durou cerca de 8 séculos. Além disso, aquando da Reconquista Cristã, modernos estudos realizados apontam para o facto de apenas a elite dirigente árabe ter sido expulsa, tendo ficado na região a maior parte da população. Exames de DNA da população de nossos dias comparadas com as do período muçulmano comprovam-nos que são praticamente iguais.
Uma presença assim tão forte marcou profundamente a cozinha do sul de Portugal, ainda mais se considerarmos que o Alcorão não é apenas um livro religioso, mas que dita normas também sobre a conduta e a dieta alimentar de seus súbditos. No entanto, não houve uma postura, digamos assim, “fundamentalista” com relação aos costumes dos povos autóctones. Os muçulmanos, enriquecidos por suas conquistas, foram absorvendo alguns hábitos das elites dos povos, embora guardando o essencial da sua própria tradição. O Corão estabelecia o que era proibido e o que era permitido, puro e impuro, mas com interdições menos rigorosas do que as estabelecidas pelo judaísmo.
Os alimentos, ingredientes e pratos de inspiração árabe que chegaram à região são inúmeros, só perdendo em número para os vocábulos árabes absorvidos pela língua portuguesa (mais de mil). A cozinha árabe nasceu numa região de poucos recursos e se baseava no pastoreio (de onde provinham o leite, a coalhada, os queijos e a carne do borrego) e nos legumes. Em regiões mais férteis se somavam os cereais e as frutas. Tal escassez deu origem ao tharid ou târida, que consistia de pão mergulhado em um caldo aromatizado e temperado com azeite. Nesse caldo poderia-se agregar as mais variadas carnes e vegetais dependendo do que estivesse à disposição, e constituía-se uma refeição completa. Essa foi a origem do mais tradicional prato alentejano, a Açorda.
O poejo, o coentro, o borrego de carne gorda, as sobremesas bem açucaradas à base de amêndoas e nozes, são coisas da culinária árabe. Também uma série enorme de especiarias que agregavam aroma e sabor à comida, através de uma refinada e imaginosa combinação dos ingredientes: a alfazema, a água de rosas, a canela, a noz moscada, frutas secas (tâmara, uva-passa, pinhões, pistaches) e frescas (romã, maçã), sem falar do açúcar e do mel.
in:AGUINALDO ZÁCKIA ALBERT