Os sapateiros olham para os pés, os polícias para os melhores locais para caçar infratores, certos cronistas para o lado irónico do momento. No final da passadeira que leva à praia do Pego a vista é total: são quase 60 quilómetros de areal que bordejam aquela curva protegida das nortadas que vai da península de Tróia até Sines. A praia do Pego, a abaixo da do Carvalhal é onde está a pequena multidão de pessoas que fugiu das grandes multidões de gente. Mas o que captou a minha atenção foi o Mexia da EDP, ou melhor o facto de em redor do lugar onde "o António" repousava, alguns pares de praia estarem a ler atentamente nas palhotas a entrevista de vida do CEO da EDP à Única, onde este demonstrava o seu merecimento por bónus de gestão. E se dúvidas houvessem ali estava: enquanto ele repousava, os outros absorviam as suas explicações em dia de descanso.
Ah, a Comporta... hoje já é um nome que como diria o nosso primeiro já tem "gléimour". Façam o exercício de ir ao Google Earth e perceber o que se trata, aquela língua de areia que esteve esquecida por obra e graça do Espírito Santo e de um horrível erro que foi a Torralta e que serviu como espanta-chiques logo à entrada. Deduzo que os mosquitos do sapal também tiveram sua parte de dissuasão.
Há uma década que no Sol Tróia, um condomínio poucos quilómetros depois de se sair do ferry, já era possível antever que a área se iria tornar um must. Aos sábados de manhã na fila do Expresso dava para captar a fauna: uns presidentes do PSI-20, uns Compromissos Portugal, uns Cabeças Falantes da TV, um general na reserva a gerir o condo - mas aquilo era casinhota de fim de semana de inverno. Tróia só passou a ser Comporta quando Sócrates destruiu com uma caixa de dinamite falsa as torres da Sonae. Mas aí quem queria comprar já tinha de pagar muito, mas muito caro.
O areal tem mesmo uma zona completamente virgem. Tal deve-se ao facto de uma das praias servir o Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz - que há vários anos está para dar lugar a um empreendimento de luxo. O negócio estará a acontecer nestes dias e os interessados são os do costume - mais uns espanhóis - e li algures que o Estado queria encaixar umas largas dezenas de milhões de euros. Mas isso era em 2008. Com tanto projeto em Tróia, Comporta e Melides a Grândola Vila Morena será brevemente a capital nacional do resort de luxo. Embora esta gente do dinheiro seja muito instável e ainda se mude para outro spot.
E a prisão estava ali a fazer de tampão. São 1500 hectares. Passei lá uma temporada nos anos 90. Os serviços prisionais tinham-na como modelo após a restruturação imposta pela brutal e assassina fuga dos Cavacos. Marques Pinto, o homem que dirigira a ponte aérea de Nova Lisboa, com recursos escassos fez dela um orgulho para mostrar a jornalista. A prisão tornou-se famosa pelo vinho e era auto-suficiente. E os presos tinham vários regimes. Os que vegetavam em celas com balde e tinham vida de prisão. Os que saíam de manhã iam trabalhar e voltavam, num regime semilivre. E os que viviam em montes na propriedade. Mas neste mundo de homens que não eram anjos havia um detalhe. Quem prevaricasse na imensa lista de pecadilhos (beber um copo de vinho) perdia tudo e era recambiado para vida de cela. Marques Pinto a entrar no pátio da prisão foi o que mais perto vi de um deus na Terra.
Os quem têm "Comporta" no seu vocabulário de sempre terão eventualmente a sua casita escondida no pinhal em plena área protegida e veem este pipocar de luxo com alguma apreensão. E trará emprego à zona? Não sei não. Este cronista viu-se obrigado a ficar numa residencial nova em Brejos, o típico caixote inacabado. Duas voltas ao dito e nada de receção. No telhado um número de telefone. A senhora: "Então para entrar tem de meter o cartão magnético na porta da rua." Resposta: "Mas eu não tenho cartão." "Claro, tem de o vir buscar à Comporta."
Senhoras e senhores: eis a pensão rooms/zimmers/chambers com cartão magnético e recepção a 6 quilómetros.
Lado irónico - Dance Party na praia do Carvalhal. Toda a noite! Coisa de Ibiza? Milhares de pessoas no areal. Mas ao perto percebe-se que é o equivalente a um baile de bombeiros de aldeia versão 2010, agora na praia, em vez do grupo, um DJ e adicionaram umas pastilhas às cervejas e charros deixando um imenso chavascal na praia. Mas a dinâmica de expectativas, a interação entre adolescentes era a mesma do velho baile na Casa do Povo agora com ecstasy na carola
Texto publicado na edição da Única de 31 de julho de 2010
in: Expresso por Luis Pedro Nunes